Cultura circular
- Palme

- há 22 minutos
- 3 min de leitura
Morar no Rio de Janeiro me trouxe de volta aos espaços de leitura. Não só às livrarias e bibliotecas em si, mas ao hábito de circular por esses ambientes - profissional e pessoalmente - com tempo, com curiosidade e, acima de tudo, com desejo de troca. Voltar a frequentar esses lugares é, para mim, uma forma de conectar com a cidade e com as ideias que nela se movimentam. É também reconhecer a importância de algo que tenho chamado de "cultura circular".
Falo de uma cultura que não se limita ao consumo individual de conteúdo, mas que se baseia na troca constante entre pessoas, histórias e experiências. Onde o livro não é fim, mas ponto de partida. E os espaços de leitura deixam de ser apenas pontos de venda ou empréstimo, para se tornarem centros de encontro, diálogo e reinvenção coletiva. Esses espaços têm o potencial de reconfigurar o tecido social urbano, oferecendo pontos de pausa e reflexão na rotina.
Essa noção de cultura circular ganha ainda mais potência quando olhamos para projetos que extrapolam os circuitos tradicionais do mercado editorial. O Favelivros, por exemplo, é um projeto que em cinco anos conseguiu implantar bibliotecas em 56 comunidades do Rio de Janeiro. Mais do que levar acervos a territórios periféricos, o Favelivros permite que cada comunidade escolha o local da biblioteca, transforme aquele espaço em um ponto cultural e promova eventos, leituras e oficinas. A leitura ali não é um fim solitário, é um começo coletivo.
A força dessa iniciativa mostra que bibliotecas não precisam ser monumentos silenciosos em bairros centrais. Elas podem — e devem — ser organismos vivos, adaptáveis, moldados pela realidade local. Cada biblioteca comunitária que nasce em uma favela é um polo de cultura circular: recebe livros, mas principalmente distribui ideias, encontros, possibilidades. É um espaço onde o saber popular e o conhecimento acadêmico podem dialogar, onde gerações se encontram para compartilhar vivências e histórias.
E o que vale para bibliotecas, vale também para as livrarias. Em São Paulo, um movimento bonito e simbólico tem se consolidado: o das livrarias de rua. Recentemente, 37 livrarias independentes se uniram para lançar um mapa impresso (e também digital), com fachadas, endereços e pequenas histórias desses lugares. O objetivo? Registrar a presença física dessas livrarias na cidade e estimular o público a (re) descobri-las como espaços de vivência cultural.
Esse mapa é mais do que um guia: é um gesto de resistência. Num mundo cada vez mais digital e impessoal, reafirmar a existência da livraria como espaço de troca humana é um ato político. É lembrar que a cultura não circula apenas por streaming, mas também por ruas, esquinas e corredores cheios de livros. É uma forma de devolver à cidade um pouco da sua identidade, de reafirmar que há valor no encontro físico, no atendimento personalizado e na conversa que se inicia entre estantes.
Editoras, autores, leitores e gestores culturais precisam olhar com mais carinho e estratégia para essas experiências. Não se trata de nostalgia do papel ou romantismo urbano. Trata-se de perceber que a cultura vive e se fortalece quando cria ecossistemas. Quando o livro não está sozinho em uma prateleira, mas cercado de conversa, café, afeto, provocação. Quando a leitura não é só uma transação (compra, empréstimo), mas uma relação. E é a partir dessas relações que surgem comunidades mais engajadas, críticas e criativas.
A cultura circular pede isso: menos linha reta, mais espiral. Menos distribuição, mais circulação. No Rio, reencontrei esse espírito. Ao entrar numa biblioteca comunitária ou numa livraria de rua, sinto que estou participando de algo maior — uma rede de ideias em movimento. Uma rede que não se limita à lógica do mercado, mas que se alimenta de pertencimento, escuta e convivência.
É hora de voltarmos a ocupar esses espaços, de fortalecer redes, de criar junto. A cultura não é algo que a gente consome sozinho — ela é algo que a gente gira, compartilha, vive em comum.
Que as bibliotecas sejam cada vez mais centros culturais. Que as livrarias sejam cada vez mais pontos de encontro. Que a leitura continue, sempre, a circular. E que a gente nunca perca de vista o poder transformador de estar junto, com um livro na mão e uma ideia na cabeça.



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